Tudo, Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo
ou nada que poderia faltar em nenhum lugar do nosso tempo
O que tudo, todo lugar e mesmo tempo tem em comum é que todos precisam de um começo, e o filme que utiliza desses preceitos como nome titulo e conceito diegético deixa, desde o começo, um gosto doce e amargo na boca. Não o doce e azedo que te da vontade de mais — por mais singular que aquele gosto te faça sentir — mas o amargo do chá de boldo que faz você se contorcer ou querer que acabe no exato momento que você experimenta.
De cara o filme já introduz “Tudo”, tudo mesmo. Em 10 minutos de filme já enfrentamos uma relação conturbada entre: 1) pai e filha, 2)filha e mãe, 3)neta e avô, 4) esposo e esposa e 5) civis e Estado, uma situação tão estressante que parece piorar a cada segundo com a introdução repentina de uma nova possibilidade, a de acessar milhões de outras versões dessa situação — já estressante — e com a iminência de um ruído caótico entre todas essas realidades; a partir daqui começa a parte doce.
Definitivamente, problemas familiares são como uma linguagem universal, provavelmente todo mundo tem suas questões familiares e isso nos conecta. Além da relação familiar, o filme explora um pouco das relações internas de alguns personagens, principalmente da protagonista interpretada pela brilhante Michelle Yeoh (que merece tudo de bom ao mesmo tempo, na sua carreira) e que ambicionou ser muitas coisas na sua vida, porém falhou nelas todas.
Para nós humanos é muito reconfortante se identificar em alguém por suas falhas, seu fracasso, sua falta de coragem e sua idealização de que seu papel em seu círculo social é tão indispensável que não existe tempo para si. Mais reconfortante ainda é a possibilidade adquirida repentinamente para a acessar realidades onde ela superar essas falhas e realiza todos esses desejos. Nessa profundidade dos personagens, onde suas frustrações e dilemas determinam potenciais novos caminhos da sua vida pelos universos, mas é nas pluralidades das realidades, unidas por uma cola surrealista onde, na iminência de infinitas possibilidades, coisas muito loucas precisam acontecer; e aqui o chá de boldo está frio já para ser tomado.
Para contrastar com o suposto realismo de uma mãe-chinesa-dona-de-lavanderia-muito-dura-e-fria-sofrendo-com-seus-impostos-e-imigração além de um fardo moral e conservador que vai ser descarregada na sua pobre e ocidentalizada filha, nada melhor que pôr os acontecimentos mais absurdos e aleatórios para tomar a maioria do tempo da história, encher a tela de cores e truques de câmera, confundir o espectador e dar a ilusão de que algo que não faz sentido é complexo. E não entenda mal, a pegada surrealista e o descarrego de referências são pontos que agradam muito e que podem dar muito certo, o filme anterior dos cineastas era sobre um cadáver animado por suas flatulências, já sabíamos o que esperar, mas o problema é que entre o TUDO nem sempre esse tudo da de todo certo.
Algumas piadas e gags visuais criaram um mal-estar e não me surpreenderia se alguém acusasse de ofensivo, a estratégia mais primária da comédia é a da quebra de expectativa, e isso acontece exaustivamente. No filme cria-se um duelo entre: uma história interessante sobre família e desejos versus possibilidades loucas aleatoriamente interrompidas por acontecimentos sem lógica onde o roteirista que idealizou essas cenas tinha certeza que estava sendo a pessoa mais engraçada do mundo, mas decerto haverá os que não vão achar a menor graça. Esse, aliás, é outro ponto que incomoda, é colocado uma relação de aleatoriedade e de “bobeira” tão forte no filme que caso alguém critique a gratuidade de alguma dessas inserções a cartada do “era para ser ruim de propósito” vai sempre ser usada, e isso é, no mínimo, muito desonesto.
Contudo, citando Mary Poppins: “Use apenas uma colherzinha de açúcar pro remédio descer”, e com isso o filme tem em seu último ato uma inclinação para o melodrama, que fará boa parte da audiência ser recompensada por uma resolução final entre os personagens. Apostando em um mergulho na psiquê de cada um deles para encontrar justificativas por suas ações e ressaltar que tudo ali foi conduzido porque somos humanos e errôneos, mas movidos pelo amor e a boa vontade, historinha tipica de um bom enlatado hollywoodiano.
Apesar dos erros, não podemos negar a descarga criativa feita nesse filme, ele reproduziu um estilo externos ao do cinema clássico, dando a impressão de uma identidade própria, além de cenas que definitivamente marcaram o ano e vão ser lembradas por algum tempo.
Titulo original: Everything Everywhere All at Once
Ano: 2022
Direção: Daniel Scheinert, Daniel Kwan
Roteiro: Daniel Scheinert, Daniel Kwan
Estúdio: A24
País de origem: EUA
Tempo: 140 min